O procurador-geral da República (PGR), general Hélder Pitta Gróz, jubilou a 9 de Maio passado, na qualidade de sub-procurador-geral da República, o coronel Manuel Jorge, através de uma deliberação da Comissão Permanente do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público (CSMMP).
Qual é o problema? O coronel Manuel Jorge sempre exerceu funções administrativas na Procuradoria Militar, como chefe de repartição de organização e planificação. Consta que nunca foi procurador, e não entrou na carreira de magistrado do Ministério Público.
A deliberação de Pitta Gróz fundamenta-se em duas normas jurídicas. A primeira é o artigo 144.º, n.º 1 da Lei Orgânica da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público, que estabelece que os magistrados do Ministério Público cuja reforma não advenha de sanção disciplinar são considerados magistrados jubilados, mediante deliberação tomada pelo CSMMP. A segunda norma invocada é o artigo 114.º, n.º 3, que dispõe que um oficial superior e os restantes militares transitam para a situação de reforma quando atingem 60 anos de idade e somam 35 anos de serviço.
Em Angola, a carreira de magistrado do Ministério Público é regulamentada por leis específicas, como a Lei n.º 22/12 – Lei Orgânica da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público. Para ser considerado magistrado do Ministério Público, é necessário ingressar na carreira por meio de um concurso público e cumprir os requisitos estabelecidos na legislação vigente. O Instituto Nacional de Estudos Judiciários (INEJ) organiza concursos para a formação de magistrados, e os candidatos devem atender a critérios rigorosos, incluindo formação em Direito e aprovação em diversas etapas do processo selectivo. Apenas aqueles que passam por esse processo e são nomeados oficialmente podem exercer as funções de magistrado do Ministério Público. Isso garante que os magistrados tenham a qualificação necessária para desempenhar suas funções dentro do sistema judicial angolano. Confiram-se os artigos 37.º, 80.º e 131.º, entre outros, do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público.
Os militares podem qualificar-se para a carreira do Ministério Público sem concurso público desde que preencham dois requisitos: a licenciatura em Direito, e frequentar, com aproveitamento, o curso de Magistratura do Instituto Nacional de Estudos Judiciários.
Amiguismo
Segundo informações recolhidas pelo Maka Angola, o general e o coronel têm uma relação que remonta aos tempos em que o primeiro era director da Polícia Judiciária Militar (PJM) e o segundo exercia a função de chefe de repartição, de organização e planificação da PJM. Em 2009, o general Pitta Gróz foi nomeado para o cargo de procurador militar e vice-procurador-geral da República, tendo levado consigo o coronel Manuel Jorge, atribuindo-lhe as mesmas funções na Procuradoria Militar, cargo que este ocupa até à data. Por acumulação, nos últimos quatro anos, o referido coronel interina a chefia da repartição de pessoal e quadros. A amizade entre os dois homens tem-se traduzido em variadas conexões pessoais e comunhão de interesses.
Nas deliberações da Comissão Permanente do CSMMP, a que o PGR preside, foram jubilados oito procuradores militares por limite de idade. Trata-se dos coronéis Ferreira António da Costa, José António, Jerónimo Chilue, Salomão Sacupinga, Diogo Eduardo da Costa, Feliciano Simões do Amaral, Américo Joaquim Gonçalves e Jesus Virgílio António. Todos esses procuradores de carreira foram jubilados nas categorias de procurador militar adjunto e procurador militar de região.
O nono jubilado, o coronel Manuel Jorge, que nunca exerceu a magistratura do Ministério Público, mereceu uma jubilação numa categoria superior à de qualquer um dos que fizeram carreira durante décadas.
Não se encontra na lei invocada na fundamentação da deliberação nada que permita a um membro do pessoal de apoio técnico da Procuradoria-Geral da República jubilar-se como magistrado. Só é magistrado do Ministério Público quem entrou na devida carreira pelas formas prevista na lei. Não há lugar a nomeações discricionárias.
Sendo assim, e até demonstração em contrário, o PGR, general Pitta Gróz, parece ter cometido uma profunda ilegalidade, que merece forte censura pública e implica dois comentários enfáticos.
Temor reverencial
O primeiro diz respeito a uma prática que pode estar a alastrar-se: o uso, por parte dos presidentes dos conselhos de magistratura, das respectivas instituições para alcançar objectivos pessoais, tirando partido do temor reverencial que impede quem os rodeia de fazer acusações. Trata-se de um fenómeno psicológico que ocorre quando um grupo de pessoas busca consenso a todo o custo, ignorando opiniões divergentes e suprimindo o pensamento crítico. Este comportamento pode levar a decisões irracionais ou disfuncionais, pois os membros do grupo, para manterem a harmonia interna, evitam quaisquer conflitos ou questionamentos.
O conceito de temor reverencial é reconhecido no direito administrativo como o receio de desagradar a uma pessoa de quem se depende hierárquica, psicológica, social ou economicamente. Esse temor pode influenciar decisões dentro dos conselhos de magistratura, levando a uma falta de independência dos seus membros.
No caso do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), dirigido pelo presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, têm-se repetido as acusações públicas acerca deste tipo de comportamento. São variados os casos, com destaque para as situações dos conselheiros Agostinho Santos (in memoriam), Aurélio Simba e Joaquina do Nascimento. A “moda” estará a passar para o Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público? Em caso afirmativo, torna-se urgente reformar estes Conselhos, abrindo-os a outros elementos e a uma fiscalização mais acesa.
É fundamental desconcentrar funções, para garantir freios e contrapesos. O PGR não deve ser o presidente do CSMMP e o presidente do Tribunal Supremo não deve ser o presidente do CSMJ.
Crime
O segundo comentário pode ser formulado de maneira mais simples. Caso sejam confirmados de forma factual os comportamentos atribuídos ao procurador-geral da República, esses actos preenchem certas tipicidades criminais previstas na legislação vigente.
Entre as disposições legais aplicáveis, destaca-se o artigo 274.º do Código Penal, que trata do crime de assunção ou atribuição de falsa identidade. De acordo com esta norma, aquele que atribuir a outrem falsa identidade, com o propósito de obter benefício ou causar prejuízo, poderá ser sancionado com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias. Além disso, é pertinente referir o artigo 374.º do Código Penal, que estabelece a punição para o abuso de poder. Este artigo dispõe que o funcionário que abusar dos poderes inerentes ao seu cargo ou função, com o intuito de obter vantagem indevida para terceiros, poderá ser sujeito a pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias. Importa sublinhar que qualquer imputação de conduta a uma pessoa deve ser analisada à luz dos princípios fundamentais do direito penal, incluindo o da presunção de inocência, consagrado constitucionalmente.
Reformas
Chegou o momento de uma reforma profunda dos Conselhos Superiores de Justiça –Judicial e do Ministério Público. Estes órgãos não podem continuar a operar como meros bastiões de gestão corporativa, ou de interesses pessoais fechados e impermeáveis à diversidade de pensamento e interesses. A Justiça exige transparência, independência e uma representatividade autêntica que reflicta a pluralidade da sociedade.
É imperativo que os Conselhos passem a integrar representantes de diferentes sectores e classes profissionais, garantindo um debate mais amplo e decisões mais equilibradas, livres de influências restritas. A renovação não pode ser simbólica; deve ser estrutural, assegurando que os princípios da imparcialidade e de prestação de contas sejam efectivamente respeitados.
Antecipar a jubilação do procurador-geral da República, Pitta Gróz, surge como um desfecho inevitável para um ciclo que deveria ter sido encerrado há muito. A questão já não é quando, mas sim por que motivo se permitiu que a degradação institucional prosseguisse por tanto tempo.
A justiça não pode ser refém de interesses pessoais, de estratégias de sobrevivência política ou de acomodações institucionais. O Ministério Público deve ser um bastião de imparcialidade e rigor, livre de condicionalismos que minam a sua credibilidade. O país não pode continuar a assistir, impassível, à erosão da confiança nas suas instituições fundamentais.
A jubilação antecipada do general Pitta Gróz pode ser vista como uma tentativa de evitar uma saída mais escrutinada. Mas o que mais importa, neste momento, não é o calendário, e sim as consequências da sua gestão e as reformas urgentes que se impõem. O tempo não deveria ter sido de espera, mas sim de acção.
O tempo da mudança na Justiça não é amanhã – é agora.