Existe uma corrente intelectual de académicos ligados à oposição em Angola e Moçambique que, do conforto das suas salas de estar, tem defendido que a forma de derrubar os regimes vigentes é provocar incidentes graves que obriguem a uma resposta desproporcional das autoridades, redundando em vários mortos. Esses mortos seriam os mártires da revolução que obrigariam a comunidade internacional a intervir e a afastar os actuais governantes do MPLA e da FRELIMO.
Durante vários anos, essa hipótese, felizmente, nunca foi testada, até que, de repente, foi.
Em Moçambique, após as eleições de 2024, morreram quase 300 pessoas, fruto da violenta repressão dos protestos pós-eleitorais. Da comunidade internacional pouco se ouviu, e o líder da FRELIMO, Daniel Chapo, mantém-se como presidente e já incorporou Venâncio Mondlane, o candidato que arrebatou as multidões, no Conselho de Estado.
Quanto a Angola, em três dias de Julho, não houve 300 mortos, mas sim 30 mortos, o que, proporcionalmente, é igual ou superior ao saldo moçambicano, onde o levantamento durou mais tempo. A comunidade internacional nem falou. Foi o silêncio absoluto.
Passados poucos dias, António Guterres, secretário-geral da ONU, brindava com champanhe a João Lourenço, no Japão, em pose extremamente amistosa. Agora, José Luís Carneiro, recém-eleito secretário-geral do Partido Socialista português, partido com fortes tradições humanistas assentes no legado de Mário Soares, não contente com uma visita a Mara Quiosa, vice-presidente do MPLA, fotografa-se no palácio presidencial a ser recebido por João Lourenço.
Por isso, facilmente se vê que os intelectuais da morte estavam enganados. Qualquer evolução ou transição em Angola, como em Moçambique, a acontecer, não passa pela comunidade internacional nem por qualquer intervenção mais ou menos amistosa do estrangeiro. Esse tempo passou. Terá de ser fruto das forças internas e da dinâmica concreta dos partidos políticos e da sociedade em Angola. Nada mais. Não deve haver ilusões.
A questão não está em imputar a João Lourenço as ordens para matar ou não, ou em usar clichés gastos para descrever a reacção da polícia e das forças de segurança. A questão é mais profunda, e refere-se à atitude posterior aos assassinatos, como se nada se tivesse passado. Assunto encerrado e a vida continua, vem a vitória no Afrobasket, a abertura da refinaria em Cabinda, a demissão de Joel Leonardo e tudo o resto. Contudo, os problemas subsistem e não foram encarados, e esse deveria ser o papel de quem se preocupa, seja internamente ou internacionalmente.
Não se trata de causticar João Lourenço, mas de alertar para o facto de que as condições sociais e económicas que estiveram na base do levantamento permanecem, e de que não houve tomada de consciência política dos mesmos. Alem disso, a polícia continua impreparada quer para lidar de forma proporcional com motins, quer para respeitar os direitos fundamentais, e nada se fez para superar esse problema.
Nesse sentido, valeria a pena tomar duas medidas para que os 30 mortos não tenham sido em vão, antes permitindo uma reflexão séria sobre o país e o seu futuro.
A experiência histórica dos Estados Unidos da América, particularmente no período conturbado da década de 1960, oferece ensinamentos valiosos para sociedades em busca de justiça social e estabilidade, como é o caso de Angola no momento presente.
Em 1967, na sequência de violentos distúrbios raciais em cidades como Newark e Detroit, o presidente Lyndon Johnson criou a National Advisory Commission on Civil Disorders, mais conhecida como Comissão Kerner. Presidida por Otto Kerner, então governador do Illinois, esta comissão reuniu 11 membros, entre líderes políticos, académicos e especialistas independentes em políticas públicas, com o propósito de investigar as causas profundas dos distúrbios, compreender os acontecimentos e propor medidas concretas para evitar a sua repetição. O relatório final, publicado em Fevereiro de 1968, constituiu uma análise incisiva da realidade racial norte-americana. A comissão concluiu que os distúrbios haviam sido provocados pela frustração acumulada e pela marginalização das comunidades negras. Apontou como causas principais a discriminação racial sistémica, a segregação urbana, a pobreza e a ausência de oportunidades em domínios essenciais como a educação, o emprego e a habitação. Entre as recomendações, destacavam-se investimentos significativos em programas sociais e reformas estruturais nas políticas públicas.
Angola beneficiaria grandemente da criação de uma comissão inspirada neste modelo. Uma instância independente, composta por cidadãos respeitados e empenhados no bem comum, poderia contribuir para uma análise honesta da realidade angolana e para a formulação de soluções duradouras. Este seria um primeiro passo, que deveria ser dado já.
Paralelamente, torna-se imperioso repensar o papel das forças de segurança na sociedade angolana. A criação de um Grupo de Humanização das Forças de Segurança seria útil. Este grupo teria como missão primordial afirmar o compromisso das instituições com os direitos fundamentais, promovendo práticas modernas de contenção de distúrbios e de enquadramento social.
Num contexto em que as forças de segurança são associadas à repressão brutal, a existência de um núcleo dedicado à humanização permitiria reforçar a confiança da população, melhorar a imagem interna e externa do país e alinhar Angola com os padrões contemporâneos de policiamento democrático. Técnicas baseadas no diálogo, na mediação e na contenção não violenta deveriam substituir métodos coercivos, contribuindo para pacificar zonas vulneráveis e prevenir conflitos.
Este grupo de humanização desempenharia também um papel fundamental no enquadramento das comunidades, funcionando como ponte entre o Estado e os cidadãos. Através de campanhas de sensibilização, escuta activa e resolução de conflitos, seria possível promover uma cultura de cidadania e de coesão social, em que os direitos e deveres fossem compreendidos e respeitados por todos. Este seria o segundo passo.
Se nada se fizer, o caos latente, a contestação permanente, a repressão violenta, correm o risco de se tornar a paisagem permanente em Angola. Não deve ser esse o caminho.