É possível reformar com o irreformável? Já se respondeu várias vezes que não. Que o maior erro de João Lourenço no seu combate à corrupção foi manter toda a estrutura básica do poder judicial do passado. Possivelmente, como se está a ver, agora é tarde demais para reformar seja o que for.
As hesitações da juíza que preside ao julgamento dos generais “Kopelipa” e “Dino” são um exemplo cabal da inépcia que continua a presidir ao poder judicial. Num dia marca um julgamento para uma data legalmente impossível, noutro dia esquece-se do tradutor de mandarim. O que mais acontecerá no julgamento não sabemos, mas sabemos que se gerou um desconforto muito grande acerca das capacidades existentes no poder judicial para julgamentos desta complexidade e sensibilidade.
Contudo, inacreditavelmente, a insuficiente preparação dos magistrados judiciais mantém-se, perpetuando o problema. Recentemente, tomaram posse vários novos juízes de direito. Novos juízes de quem se espera uma nova competência técnica e uma nova atitude. Já não são formados em escolas marxistas, em que o poder judicial é encarado com desconfiança, como se fosse uma projecção das estruturas burguesas e um mero instrumento do poder político. Mas, pelos vistos, nada mudou.
Algumas fontes do meio judicial alertaram-nos para o facto de alguns desses juízes não terem feito o percurso legal necessário para chegar à magistratura.
Por norma, o acesso à magistratura é feito através de um concurso público realizado pelo Instituto Nacional de Estudos Judiciários (INEJ) que consiste na realização de provas escritas. Uma vez realizadas as provas, os juízes em formação (auditores) frequentam aulas teórico-práticas no INEJ por um período de nove meses. Os auditores aprovados nesta fase vão para um estágio junto dos tribunais, por mais um período de nove meses. Após aprovação nas duas fases, os nomes são remetidos para os respectivos Conselhos Superiores da Magistratura Judicial e do Ministério Público para nomeação e tomada de posse.
Aparentemente, o grupo de 20 juízes não terá passado por este caminho legal, tendo ocupado os lugares de forma administrativa, isto é, sem se estabelecerem as suas competências adequadas. Sendo isto verdade, teremos ainda mais situações embaraçosas nos tribunais.
O certo é que está documentalmente provado que, em 2023, um conjunto de juízes formadores prestigiados, de que se destacam Joaquina Ferreira do Nascimento, Pedro Kinanga dos Santos e Cristiano André, presidente do Tribunal Supremo de Angola de 1997 a 2014, escreveram ao presidente do Conselho Pedagógico e Disciplinar do INEJ manifestando a sua preocupação e desagrado devido a uma reunião de notas que ocorreu a 13 de Fevereiro de 2023. A lista de preocupações é grande e resume-se, no final, à impreparação técnica e eventual falta de idoneidade moral dos auditores.
Em concreto, os subscritores do documento queixam-se de que há juízes formandos/auditores apanhados a copiar em exames ou que obtiveram zero no exame, mas a quem foi permitido realizar uma prova de recurso, o que quer dizer que a tentativa de fraude não foi punida. Escrevem Cristiano André e os restantes juízes que o “gesto, excessivamente complacente, é perigoso, não só porque permite o acesso de pessoas sem integridade e moral a uma carreira que exige um elevado grau de integridade, (…), como fica a mensagem de que a ética é um requisito absolutamente dispensável para o exercício da profissão”.
Além disso, os signatários revelam que houve uma alteração das notas das pautas, com vista a evitar que certos alunos reprovassem ou não fossem a exame de recurso. Quer isto dizer que há formandos sem preparação que foram administrativamente declarados com preparação. Resultado, chegam aos tribunais e não sabem actuar. É tão simples como isto.
A isto acresce que houve alguns formandos que nem sequer foram avaliados, tendo meramente recebido a classificação de 10 valores, fixada por deliberação administrativa e não por qualquer correcção de prova.
Há ainda outras falhas graves na formação administrada pelo INEJ: a reduzida carga horária (10 meses de formação em vez dos 14 meses oficialmente estipulados), a ausência de disciplinas fundamentais (ex: processo executivo), turmas demasiado grandes (40/50 pessoas em vez das 25/30 aconselhadas).
O quadro da actual formação dos juízes é desolador. Quando se esperava que a perícia técnica e a capacidade jurídica aumentassem, parece que se instalou um facilitismo e um laxismo que abrem caminho a piores resultados no futuro.
No meio desta aparente falta de rigor e exigência na formação dos juízes, pelo menos segundo os subscritores do documento acima referido, surgem casos concretos e acusações mútuas que contendem com a dignidade da profissão. De um lado, uma formanda/auditora recorre a tribunal para suspender a decisão de reprovação por fraude, pretensão que o Tribunal da Relação de Luanda recusou, e embrulha-se numa saga jurídica sem sentido para uma jovem aspirante à magistratura. Em simultâneo, surgem acusações, provenientes de fontes judiciais, que tudo se deve a práticas de nepotismo e favoritismo do actual presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, e fulaniza-se toda a situação, acusando-se o presidente de perseguir os juízes que não seguem as suas orientações ou que pretendem impor mais rigor na formação.
Na realidade, o problema é estrutural. Trata-se de ter o circuito de formação dos juízes viciado por falta de transparência, rigor e integridade.
O Decreto Presidencial n.º 174/24, de 23 de Julho, criou uma Comissão de Coordenação Metodológica do INEJ. Não conhecemos ainda o trabalho dessa Comissão, nem se tomou medidas sobre o laxismo e o facilitismo em que o INEJ aparenta viver. Também é certo que o ministro da Justiça tem especial responsabilidade em todo este processo. O INEJ é um estabelecimento do Estado e não da corporação de juízes. A responsabilidade da formação de juízes capazes, competentes e íntegros é do Estado. Ao contrário do que se possa pensar, o responsável pelo INEJ não é o presidente do Tribunal Supremo, mas sim o presidente da República, através do ministro da Justiça. É ele que deve intervir nesta situação de alegado descontrolo científico-pedagógico na formação dos juízes de amanhã.