Com pompa e muita circunstância, o Tribunal Constitucional comemorou recentemente o seu 17.º aniversário. Ao contrário dos tribunais comuns, o Tribunal Constitucional é um tribunal essencialmente político, que trata de assuntos políticos. É errado avaliá-lo no âmbito do mero campo jurídico. O Tribunal Constitucional é, sobretudo, a válvula de escape do sistema político, a última garantia do bom funcionamento da política e o derradeiro recurso dos descontentes e da protecção dos direitos fundamentais. É enquanto válvula de escape e garante da harmonia do sistema político que o Tribunal deve ser avaliado.
Rui Ferreira, o presidente do Tribunal Constitucional na sua fase de lançamento e consolidação inicial, explicou que o tribunal necessitava de ter um avanço cauteloso e por pequenos incrementos, justificando assim a deferência geral para com o poder político da jurisprudência inicial desse tribunal, tão bem espelhada no Acórdão n.º 319/2013 do Tribunal Constitucional de Angola, datado de 23 de Outubro de 2013, que declarou a inconstitucionalidade parcial de artigos que permitiam à Assembleia Nacional realizar interpelações, inquéritos, perguntas e audições aos membros do Executivo.
A fundamentação deste acórdão foi que, segundo a Constituição angolana, os ministros e os governadores exerciam funções delegadas pelo presidente da República, que é o titular do poder executivo. Assim, permitir tais mecanismos de fiscalização corresponderia, na prática, a permitir a fiscalização directa do presidente, o que o Tribunal considerou incompatível com o sistema de governo presidencialista consagrado na Constituição.
Na verdade, esta interpretação do Tribunal foi sempre contestada, mesmo pelos defensores do sistema presidencialista, o qual é sempre caldeado por mecanismos de checks and balances. Tratou-se claramente de um exagero interpretativo do Tribunal Constitucional, por deferência excessiva face ao poder executivo.
Rui Ferreira justificou tal deferência com o argumento de que era fundamental evitar que o Constitucional tivesse o mesmo destino que o Tribunal da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral), que, por ter tomado uma decisão contra o Zimbabué, um dos estados-membros, foi dissolvido. Era mais importante deixar viver o Tribunal Constitucional angolano e não permitir que morresse à nascença devido a um eventual conflito com o poder executivo.
O tempo foi passando, Rui Ferreira foi substituído por Manuel Aragão, que, após curto mandato, saiu a “bater com a porta” contra o poder político, afirmando que a democracia estava em perigo, devido à constante intromissão do executivo no Tribunal.
Manuel Aragão foi sucedido por Laurinda Cardoso. A nomeação desta última levantou dúvidas, pois Cardoso vinha directamente de um posto de secretária de Estado do governo. Numa fase inicial, o discreto charme legal de Laurinda Cardoso fez acreditar que o Tribunal Constitucional entraria numa fase de maturidade, ganhando autonomia de decisão face ao poder político. Exemplo disso foi o Acórdão n.º 845/2023, que declarou a inconstitucionalidade orgânica, formal e material das normas constantes do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, que previa a atribuição de 10% dos activos financeiros e não financeiros recuperados aos órgãos da administração da justiça, incluindo juízes.
Contudo, paulatinamente, a jurisprudência do Tribunal tem-se de novo enquistado na sua tradição, isto é, revelando deferência para com o poder político e o partido que o suporta. Significativamente, todos os pedidos relevantes feitos pelo principal partido da oposição — a UNITA — têm sido indeferidos. Tal facto leva-nos a uma análise política, e não jurídica, mas que tem de ser realizada.
Observemos o que se passou com o muito recente Acórdão n.º 994/2025, relativamente à deliberação da Assembleia Nacional sobre a distribuição partidária dos membros da Comissão Nacional Eleitoral. O acórdão decidiu que a deliberação era constitucional e recusou, mais uma vez, as pretensões da UNITA. A decisão foi tomada com reserva de um juiz, Vitorino Domingos Hossi, e com declaração de voto da juíza Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo, os quais, contudo, não constam da publicação oficial online do acórdão – quando deveriam constar.
A maioria que determinou a decisão fê-lo com base no princípio do respeito da maioria e das minorias, defendendo que esta norma geral não deve ser “subsumida ao método de Hondt, porquanto o objecto que encerra não se confunde com o do apuramento de resultados eleitorais, mas sim com a composição da Comissão Nacional Eleitoral (CNE)”.
Por sua, vez a juíza Margareth Nangacovie considerou o contrário: que os partidos políticos devem ser representados na CNE de forma proporcional à sua expressão eleitoral no Parlamento, e não agrupados genericamente sob os rótulos de “maioria” e “minoria”, aceitando a utilização do método de Hondt.
O interessante, é que, do ponto de vista jurídico-constitucional, ambas as posições são defensáveis. Ambas estariam certas. No fundo, a decisão caberia à sensibilidade e posição pessoal dos juízes, sendo maior a influência política do que a legal.
E é esta a verdadeira questão com que o Tribunal Constitucional se defronta. As suas decisões, sobretudo quando dizem respeito aos partidos políticos, dizem essencialmente respeito à aplicação de princípios gerais, os quais estão sujeitos a interpretações muito abrangentes. Na realidade, são decisões com um forte pendor político, que reflectem a mundivisão dos juízes e não propriamente o seu saber legal.
Por isso se entende que o Tribunal Constitucional deveria estar atento aos equilíbrios políticos e ao sentir da sociedade, assumindo-se, sem radicalismos nem activismos excessivos, como um órgão de bom senso e racionalidade, por onde os descontentamentos poderiam fluir, dando razão umas vezes a uns, outras vezes a outros, dentro da Constituição e da Lei, mas mostrando-se um árbitro justo, capaz de desembaraçar os bloqueios político-sociais.
Se, pelo contrário, o Tribunal Constitucional não funciona como uma válvula de escape, então não cria uma imagem de árbitro justo ou em busca de justiça. Torna-se mais um bloqueio do sistema e não cumpre a sua função de guardião da Constituição. No fim de contas, ninguém acredita nele e serão procuradas soluções extrajudiciais, eventualmente até violentas. Isso ninguém quer.
A verdade é que a estabilização do sistema político está nas mãos do Tribunal Constitucional.